O umami dos nossos dias

6 Maio, 2013

48_2013.05.03 A Nazaré vista do Sitío, Ana Isabel Ramos

Hoje, enquanto preparava o meu almoço na nossa recém-estreada casa e a minha mente flutuava preguiçosamente pelo mundo dos sabores, pensei no paralelismo que se pode estabelecer com a nossa realidade actual.

Comecei pelo doce, pelo calor do pôr-do-sol numa bela tarde de verão. Lembrei-me da fruta de verão, as cerejas, os alperces, das saudades de trincar um pêssego, o sumo a escorrer pela mão. Depois lembrei-me do doce de leite argentino, que para mim, de tão doce que é, me deixa com a garganta a arder. Também o sol nos deixa assim, quando é demais.

À medida que o almoço ia cozinhando, lembrei-me do salgado e da sensação agradável que dá quando está no ponto certo. O sal, um verdadeiro intensificador de sabor, traz o melhor de cada ingrediente quando usado com conta, peso e medida. Quando se exagera, a comida torna-se intragável e a tensão arterial dispara. Fez-me pensar na “reclamação” e na “queixinha”. A primeira, como o sal no seu ponto, ajuda a melhorar um serviço, a trazer o melhor de todos para o bem comum. Com uma reclamação, o utente de um serviço está a dar informação preciosa para melhorar o seu funcionamento. É assim que as reclamações devem ser encaradas por todos, os que as fazem e os que as recebem. Quando se escorrega para a queixinha, a que é feita para o ar, que ultrapassa o desabafo e que peca na forma e no conteúdo, a que normalmente termina com um encolher de ombros e um resignado  “este é o país que temos”… essa é venenosa. Não traz o melhor de ninguém. Pelo contrário, traz uma sensação de impotência e deixa os “queixinhosos” a sentir o alívio de serem moralmente superiores.

Prato salgado terminado, passei à sobremesa com uma maçã reineta, fruta da minha predilecção. Aquelas pequeninas, com um ar feiote, são deliciosas: ácidas na medida certa, deixam um sabor suave na boca. Já quando trinco um limão, o que sinto é dor: começa na articulação da mandíbula e alastra dolorosamente  pela cara e pescoço. Assim são os impostos: na medida certa servem para financiar o Estado social que nos dá educação, justiça e saúde. Mas quando as taxas sobem, o cidadão contrai-se de dor e poupa para os dias que hão-de vir.

O sabor amargo é muitas vezes confundido com o ácido, apesar de diferentes. Raramente é aprazível, basta lembrar-nos daquela amêndoa amarga que trincámos com a confiança de ir comer uma amêndoa doce. Assim são os cortes feitos em pensões, segurança social, educação e saúde. Deixam-nos com o verdadeiro amargo de boca, quando passámos tanto tempo a contribuir para a quimera do amparo em caso de necessidade, velhice ou invalidez.

Contudo, falta-nos o sabor mais estranho e indescritível, mas que todos certamente já sentimos: o umami. Nem salgado, nem doce; nem ácido, nem amargo. Segundo dizem os cientistas, dá uma sensação agradável que incita a salivar. Dizem que está presente em carnes, nalguns peixes e caldos, e também nalgumas verduras. É difícil de distinguir, tanto que só no século XX se começou a falar nele. Algo parecido a umami se passa na nossa relação com Portugal: que laço é este que nos une a este pedaço de terra, com uma paixão (que às vezes se manifesta em ódio), um fervor, um patriotismo imenso? Serão os sabores da infância? Serão as feijoadas de domingo (bastante ricas em umami, por certo) ou as saladas de polvo à beira mar? Há algo muito elementar e instintivo que nos une a este país, algo indescritível, mas presente.

Como o umami.

(Texto e imagem: Ana Isabel Ramos)