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De graça e com graça

19 Maio, 2013

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“Boa tarde e bom apetite”, disse-nos o senhor que se levantou da mesa ao lado, no restaurante de bairro onde almoçámos ontem. Parece que toda a gente que lá vai se conhece.

Não me espantei com o desejo-cumprimento do senhor, nem com a sua repetição restaurante fora, ao passar pelas restantes mesas até à porta da saída. Não me espantei porque é assim a vida de bairro. Apanhou-me de surpresa, contudo, porque já não me lembrava de como era.

Este pequeno gesto fez-me sentir que já pertenço a esta nova vida. Em pouco tempo de aqui estarmos, já temos vizinhos a conhecer-nos e a cumprimentar-nos. E chego à conclusão, mais uma vez, de que são de graça as pequenas coisas da vida que nos alegram o coração.

Ver alguém a apanhar um pedaço de lixo do chão, para o devolver ao caixote; cumprimentar o carteiro no eléctrico, que já me conhece; ouvir os bons dias da senhora que regista as minhas compras na caixa do supermercado, e ouvir as velhotas do bairro perguntar-lhe pelo bebé que aí vem? Tudo isto são pequenas cortesias que me deixam feliz, não custam nada a ninguém e fazem a vida de todos nós, desta comunidade, infinitamente mais bonita, apesar da crise, dos salários que encolhem, dos impostos que esticam e dos cortes em tudo e mais alguma coisa.

Ontem, horas depois de me terem desejado bom apetite na “cantina” do bairro, vi o episódio da série “Depois do Adeus”. Para quem não acompanha, entre as cenas gravadas hoje a retratar a época (a narração está agora em Janeiro de 1976), aparecem excertos de gravações do tempo, por vezes com pequenas entrevistas de rua, para ilustrar o ambiente que se vivia no momento. Numa das entrevistas, uma senhora queixava-se do preço e da escassez dos alimentos. Claro, esta escolha da realização é muito pouco inocente. Mas fez-me pensar, de novo, em como temos memória curta: hoje falamos da pior crise de sempre; mas desconfio que, apesar da dureza do momento actual, em 1976 o país estava ainda pior.

E tal como o país saiu dessa crise, nós iremos sair desta. Como? Perseverando, inovando, poupando, escolhendo. Com toda a criatividade e capacidade de adaptação pelas quais os portugueses são conhecidos.

E fazendo de cada dia um dia melhor, com um pequeno gesto de cortesia para com aqueles que nos rodeiam.

(Texto e imagem: Ana Isabel Ramos)