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O arfar do fole

6 Maio, 2015

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CCB, Grande Auditório, Danças Ocultas, 5 de Maio

Desconfio que só aqui, em Portugal, conseguimos a conjugação única (perdoem-me os que não acreditam em nenhum tipo de fronteiras) dos sons e gentes que ontem se reuniram. Pareciam um ramo de flores do campo, tão bonitos e viçosos.

Braçadas de flores, com direito a espinhos e cheiros que antes dos percebermos nos arrepiam e espetam – que outra coisa dizer do turbilhão fantástico entre a Orquestra Filarmonia das Beiras, as 4 concertinas, o Tó Trips e o Pedro Gonçalves, na segunda vez que estes 2 subiram ao palco? Caos por todo o lado, e que bom foi. Antes disso os Dead Combo já nos tinham deixado o coração de batimento estugado com a interpretação de “Esse olhar”, aquilo é que foi poesia, como se um sonho lindo fosse.

Rodrigo Leão também partilhou o palco por duas vezes. Com a comovente “Tardes de Bolonha” e a força de “Danças d’Alba”, nesses momentos mais do que a construção conjunta do som, foi bom ver a humildade de Rodrigo Leão, que facilmente poderia ter caído no papel do mestre, mas ali era o amigo, o velho amigo que ajuda no enfunar dos foles e na esgrima dos arcos.

E depois? Depois ficou tudo vermelho, um peito aberto aos elementos , vermelho sangue e terra, trabalho e força, amor, pulsar e de novo a respiração.

Esta roda está parada
Ai por falta de tocador
Ai a roda já pode seguir
Ai que a toca o meu amor*

Cantou a Carminho e cantou como só ela consegue e sabe, e o que nasceu daquele momento foi algo de tão intímo que pertence apenas e só a cada um que teve o privilégio de assistir. E eu guardo-o como a um segredo (que se me virem hoje a chorar, ainda é de enternecida).

E mais, muito mais. Se dúvidas houvesse que a intimidade não se faz apenas de corpos juntos, da carnalidade tradicional dos sentidos bíblicos (e isto apesar do arfar erótico e côncavo da concertina, mandadora do ritmo), o espetáculo de ontem tinha dado as provas necessárias para acabar com essas dúvidas bacocas. São uma portentosa caixa toráxica com quatro pulmões. Os quatro elementos dos Danças Ocultas respiram como um só, e olhá-los em palco é também ver a sintonia desse movimento sincrónico, como se fossem todos soprados pelo mesmo vento. Apresentaram-se com mais vinte cordas, a Orquestra Filarmonia das Beiras, dirigida pelo maestro António Vassalo Lourenço, uma grande família.

No início inspirámos quando as luzes baixaram e passámos duas horas em voluntária apneia. E no fim, aplausos, muitos, intermináveis, de muita gente que não queria sair dali, que não queria que o fole se calasse – e não se calou, e é isso que nos falta perceber, o fole vem connosco neste nosso respirar português à espera do cheiro das flores no campo nas noites de verão.

‘* “O Diabo Tocador” inspirada numa recolha de Giacometti

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(Texto: Samanta Velho para o Portugalize.Me/ Primeira Imagem: ©alxalmeida)