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Portugalize.Me_comprar o que e nosso.001

Aqui há dias, em visita a uma loja de artesanato localizada no interior de Portugal, a dona contava-me que os consumidores locais não apreciavam comprar as peças dos artesãos da zona. Perplexa, perguntei porquê? Porque se era de perto, contava-me ela, então era conotado como não tendo qualidade, e só o que vinha de longe, de sítios com uma cotação mais alta na incerta escala do interesse, é que era visto como sendo digno de ser comprado.

Fiquei a pensar no assunto e a minha mente voltou atrás, ao meu último ano de faculdade. Tinha na altura uma “mega-cadeira” composta por duas disciplinas diferentes, cujos professores, à revelia de toda e qualquer orientação directiva, juntaram numa só. Esse foi um ano de puro suplício, e passar pelas aulas deles foi, claramente, das partes mais difíceis de todo o curso.

Esses professores advogavam constantemente que o que era interessante vinha de fora, e adoravam debitar nomes de artistas que se encontrassem naquele estreito equilíbrio entre uma ligeira consagração, mas ainda muito desconhecidos. Penso que os fazia sentir muito importantes por serem os portadores da boa nova em relação aos seus imaturos e ignorantes estudantes (nós). Obrigavam-nos a ler livros intragáveis (uns mais, outros menos) e a escrever recensões sobre os ditos; tínhamos de ver filmes e observar as suas características fotográficas e compositivas. O prazer de simplesmente ouvir uma história a ser contada não era para ali chamado. E quanto mais estrangeiro e difícil de ver, mais artisticamente relevante era o filme.

Era o meu quinto ano da faculdade, na altura em que os cursos ainda tinham cinco – ou até seis! – anos, e era a minha última oportunidade de fazer Erasmus, por isso, assim que abriram as inscrições, manifestei imediatamente o meu interesse. O facto de não apreciar particularmente a forma como era conduzida a mega-cadeirona que tinha pela frente não foi o primeiro factor a motivar essa minha inscrição; mas não minto: também não foi o de menor importância.

Uns meses mais tarde fiquei a saber que teria uma bolsa para ir fazer o semestre de Verão à Staedelschule, em Frankfurt, e comecei a preparar a minha partida junto de todos os professores. Não teria equivalências, já sabia, mas queria ter a certeza de que poderia fazer os trabalhos durante o Verão e os exames na época de Setembro. Obtive o consentimento de todos, até que abordei este dois professores, os mesmos que advogavam que só o que vinha de fora era bom. Da parte destes, só resistências: que tinha de fazer um bom quinto ano, e que o bom quinto ano era ali, com eles; que ideia era essa de jogar o meu futuro fora, indo “perder” um semestre inteiro a passear na Alemanha? Para quem achava que o que era bom era o que vinha de fora, advogar agora que o que era bom era estar com eles foi um volte-face ligeiramente inesperado. (Ou não. A vaidade tem destas coisas.)

Desde essa altura que os meus sensores ficam alerta perante as generalizações como “compre o que é nosso”, a favor do consumo de bens fabricados em Portugal; da mesma forma em que as minhas antenas disparam quando me apercebo de que a opinião de alguém sobre um produto, como acontece nos casos que acima descrevo, depende quase exclusivamente do ponto geográfico em que foi criado. 

Porque é que devo comprar algo que foi feito em Portugal se tiver nas mãos algo de função equivalente, materiais, design e execução superiores, mas feito no estrangeiro? Da mesma forma, há alguma razão para excluir imediatamente o que é local, só porque é local? Se o design, os materiais e a execução forem equivalentes (e muitas vezes são até melhores), excluir o que é português, só porque é português, é tão preconceituoso quanto o contrário.

Por isso, acredito mesmo que devemos comprar o que é nosso porque é bom; e não deixemos de comprar o que é bom só porque é nosso.

(Texto: Ana Isabel Ramos)