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A Bimby e os portugueses

6 Janeiro, 2014

Portugalize.Me_Bimby

O artigo do Wall Street Journal (Even in Straitened Times, Portugal loves Its Bimby Cooking Robots) relançou a polémica e o Portugalize.Me convidou-me para escrever sobre ela. Mas antes, dois avisos prévios:

1 – Não fiz nenhum estudo sobre isto (mas eles existem, nomeadamente a investigação de doutoramento em curso a que o dito artigo se refere), portanto esta é a minha opinião pessoal sobre o assunto; mas antes de a escrever, li e ouvi muitas perspectivas, de um lado e de outro da barricada, portanto esta opinião é produto de reflexão, experiência pessoal e informação;

2 – Não tenho Bimby em casa, por escolha pessoal – mas já comi comida feita na Bimby (provavelmente todos nós já comemos, visto que é usada em restaurantes, mas digamos que no meu caso foi com consentimento informado), já vi a máquina a trabalhar e conheço o seu funcionamento de um modo muito geral, embora esteja longe de ser uma expert.

Não tenho Bimby por escolha pessoal. Agora todos os anti-Bimby vão bater as palmas de contentes e esperar que este texto seja mais uma vez uma crítica feroz à máquina dos “acéfalos” e das “marias-vão-com-as-outras”. Não, não vai. Lamento desapontar-vos.

E agora os pró-Bimby estão a esfregar as mãos de contentes. Porque se não digo mal, então vou dizer bem. Bom, também não exactamente. Lamento.

Parece-me que não vou agradar ninguém.

Mas como dizia o Herman José na altura em que ainda era engraçado, as opiniões são como as vaginas (quem quer dá-las, dá-las).

A Bimby, como é conhecida em Portugal (no resto do mundo, dá pelo nome de Thermomix, embora a designação Bimby também seja conhecida noutras partes, como uma espécie de alcunha carinhosa), é um robot de cozinha que agrega numa só máquina várias funções, que substituem uma quantidade de pequenos electrodomésticos (varinha mágica, panela de pressão, panela a vapor, liquidificador, trituradora, processador de alimentos, batedeira, entre outros). Digo isto porque por vezes fala-se da máquina sem sequer se saber o que ela é.

E é isso. A Bimby é um instrumento. Nada mais do que isso. Um aparelho de cozinha bastante sofisticado, mas não cozinha sozinho (ao contrário das visões mitificadas de alguns sonhadores, que imaginaram um robot daqueles de filme de ficção científica). Quem cozinha continua a ser o cozinheiro, a Bimby é uma ferramenta. Por isso, a criatividade ou falta dela não depende da máquina – mas da pessoa. A qualidade ou falta dela, a mesma coisa. O sabor ou falta dele, idem. E por aí fora.

Mas se é apenas uma ferramenta, porque será então que provoca reacções emocionais tão intensas?

A ) Pelas suas qualidades únicas? Dizem os amantes da Bimby que permite poupar tempo e dinheiro. Porque se gasta menos tempo a cozinhar, portanto enquanto as coisas se fazem dentro da barriga do bicho, podemos ir fazer outras coisas para outro lado e isso aumenta a nossa qualidade de vida. Porque, com as saídas tardias do emprego que são o quotidiano da maior parte dos portugueses – cada vez mais esmifrados pelo mercado de trabalho – não há tempo para ir para a cozinha e estar de volta dos tachos. Porque permite reaproveitar os restos, não desperdiçar comida, não gastar dinheiro a comer fora ou em refeições pré-preparadas. Porque facilita a confecção caseira de muitos produtos, não sendo necessário comprá-los já feitos e a preços mais altos (molhos, massas, pão, para dar apenas alguns exemplos).

Tudo isso é verdade para as pessoas que fazem (e bem) render a máquina, claro que sim. Mas também há pessoas que, não tendo Bimby, se organizam para aproveitar o tempo que têm, para ter refeições preparadas para quando há pouco tempo para cozinhar, que aproveitam os restos (aliás, a gastronomia portuguesa tradicional é excelsa em termos de aproveitamento de restos), que fazem a maior parte das coisas em casa, que evitam comer fora ou comprar refeições pré-preparadas.

As pessoas com Bimby são mais ecológicas, organizadas e poupadas do que as pessoas sem Bimby? Não. As pessoas sem Bimby são mais inteligentes, capazes e melhores cozinheiras do que as pessoas com Bimby? Não.

B ) Porque é uma questão de moda, criando uma necessidade que antes não existia? A publicidade, o marketing e o próprio discurso de alguns fanáticos da Bimby quer fazer-nos acreditar que é a última coca-cola do deserto e que sem ela não podemos viver – tipo smartphone (se não tivermos internet no telefone não somos ninguém, se não fizermos um rolo de carne na Bimby somos menos do que os outros). Muito poucos serão imunes ao marketing e à publicidade (seríamos muito ingénuos se achássemos que podemos ser impenetráveis a esse ponto, até porque a maior parte do tempo age de forma inconsciente), por isso a publicidade boca-a-boca funciona, e de que maneira.

Mas por outro lado temos que admitir que a publicidade mais formal da Bimby não é particularmente invasiva – não a vemos na TV, nos mupis da rua ou nos transportes públicos (o mesmo não se pode dizer das suas concorrentes). Mas vemo-la colocada em programas como o Masterchef – publicidade bem dirigida ao alvo, há que convir, porque quem vê esse programa tem pelo menos um mínimo de interesse pela cozinha e um certo grau de fascínio pelos milagres que podem sair das mãos de um cozinheiro, mesmo amador. Tudo o que a máquina faz pode ser feito de outras maneiras – temos é que saber fazê-lo. Mas tudo isto cria a ilusão que podemos ser melhores, que nos podemos superar a nós mesmos, se tivermos a Bimby e que não o poderemos fazer sem ela.

Mas assim como assim, estamos sempre à procura de ilusões, ou não?

C ) Consequentemente, será que a Bimby cria dependência? As pessoas com Bimby já não sabem cozinhar sem ela e as pessoas sem Bimby têm medo e desprezam a suposta dependência que a máquina provoca – como o choque entre as pessoas que fumam e as que não fumam (só que a Bimby não provoca cancro do pulmão; pelo menos não se for bem utilizada, porque consigo imaginar um ser maquiavélico a querer destruir o mundo utilizando a Bimby).

Normalmente, as pessoas que sabem cozinhar, sabem fazê-lo usando aparelhos ou instrumentos diversificados – no fundo, o que estiver à mão no momento e nas circunstâncias. Se não temos espremedor de citrinos, usamos um garfo e obtemos na mesma sumo de limão. Quem não sabe ou sabe muito pouco de cozinha, tende a repetir os mesmos gestos, como se fora um ritual mágico, sem saber muito bem como é que funciona, mas sabendo que se fizer aquilo daquela maneira dá mais ou menos o mesmo resultado – e esse ritual pode envolver, ou não, a Bimby.

Certo, as pessoas com tendência para ficarem dependentes de coisas ou de outras pessoas podem ficar dependentes da Bimby, como ficariam dependentes de outra coisa qualquer. A culpa é da máquina?

D ) Então será que estas reacções emocionais tão intensas surgem porque é uma máquina cara? Sim, é cara. 30 vezes mais cara do que uma varinha mágica (mas também tem 30 vezes mais potencialidades). E, quer queiramos quer não, é notório o fascínio que exercem sobre nós tecnologias caras – basta ver a importância que os portugueses (porque é deles que estamos a falar) atribuem aos telemóveis, tablets, televisões tamanho XL, carros topo de gama e outras coisas que tais. Parece-me que é indiscutível que, para uma boa parte das pessoas, a Bimby seja um sinal de estatuto social e de um certo nível de vida.

Mas porque é que isso seria uma coisa desprezível? Somos consumistas, sim. Outros países serão menos consumistas, admito. Mas esses outros países expressam as mesmas coisas de outras maneiras. Em todas as sociedades há símbolos de estatuto social e de nível de vida – podem é ser diferentes dos nossos. Os nossos serão piores do que os dos outros?

E dentro da mesma sociedade, as pessoas que não procuram esse tipo de sinais é porque são superiores a isso, como muitas vezes querem fazer crer, ou simplesmente não dão importância a essas marcas, porque dão prioridade a outras?

Convenhamos, dentro do género, um robot de cozinha como símbolo de estatuto social não é das piores coisinhas que podemos imaginar. A minha opinião não é isenta, visto que eu atribuo muita importância à gastronomia, à culinária e à comida (ou não tivera eu um blogue de cozinha), mas ao menos a Bimby é útil. Alimenta pessoas – e se alimentar é um ato de amor, então ela contribui para a expressão desse amor e para fomentar a ligação entre as pessoas.

Sim, já fazemos isso há séculos. A refeição sempre foi, para além de uma forma de sobrevivência, expressão do amor que temos pelos outros, forma de ligação humana e fortalecimento dos laços familiares. Não é por acaso que a cozinha era o centro da casa portuguesa, porque era sempre a divisão mais calorosa, no sentido literal e metafórico do termo. Não precisamos da Bimby para o fazer. Pois não. Mas se a Bimby servir para as pessoas continuarem a fazê-lo, qual é o mal? E se há pessoas que continuam a fazê-lo sem a Bimby, qual é o mal? Que coisa é esta, a ditadura do “como as coisas devem ser feitas”? Há uma só forma de cozinhar? Há uma só forma de viver?

(Texto: Ana – Cozinhar Sem Lactose/ Imagem: Raquel Félix – Portugalize.Me)