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A memória é um lugar. Por vezes claro, por vezes estranho. Mesmo quando nunca se esteve num determinado sítio ou não se vivenciou algo, a memória trata logo de arranjar uma espécie de habitáculo temporário para este tipo de referências. É inevitável, porque temos sempre alguma ligação com o sucedido, mesmo que indirecta. As histórias que nos contam servem de substracto a este habitáculo. Tentamos aceder a uma certa lembrança com a ajuda do que nos contam sobre terceiros que nunca conhecemos em vida ou sobre coisas do nosso passado que dificilmente acedemos. A memória é uma mescla pouco cronológica, pouco assertiva.

De cada vez que venho a Pinhel, gosto de agarrar na gaveta onde guardamos as fotografias e de as rever. Literalmente desencaixo do armário a gaveta funda de madeira maciça, sento-me no chão da sala, perto da lareira, e começo a revisão. Dali saem as férias na praia da Dona Ana, as expedições na escola secundária, os trajes de carnaval, a Expo 98, a primeira viagem a França para o casamento da minha prima Amélita, a primeira comunhão, o piquenique junto ao rio Côa… e outras tantas que fogem das minhas vivências mais directas.

Revejo as fotografias do casamento dos meus pais, as fotografias de Timor de quando o meu pai esteve por lá (tempo da guerra do ultramar), do meu avô Alexandre (que nunca conheci, morreu tinha eu poucos meses), da juventude do meu pai, de onde resultam memórias que são lembranças das histórias que me contaram sobre as mesmas.

Hoje encontrei três fotografias que nunca tinha visto, das quais não tenho qualquer história ou referência. Reconheço as caras: o meu pai, o meu avô, a minha avó, os meus tios (acho eu…) e um vasto grupo de homens totalmente desconhecidos. Olho as fotografias e tento fazer uma espécie de recriação do sucedido através de outro tipo de memória. Não da vivencia, não das histórias mas da relação que tenho com quem conheço e vejo ali retratado. Volto a olhar e começo e efabular histórias, possíveis contextos para aquelas imagens, para os conhecidos e desconhecidos com a ajuda do que conheço sobre o meu pai, sobre a minha avó… e, de repente, os desconhecidos ficam mais próximos, o avó que nunca conheci torna-se familiar e os lugares onde nunca estive ficam mais perto.

A memória é um lugar estranho, um lugar onde é possível recriar outros lugares, outros tempos, mesmo que não seja o nosso tempo, o nosso lugar. Não perder a memória do que está para trás de nós é parte da nossa identidade, banalizá-la torna-nos mais frágeis, menos interessantes… direi mesmo ocos.

A memória é sem dúvida um lugar de possibilidades. 

 

Texto: Raquel Félix – Portugalize.me

Fotografias: Autor desconhecido